Em um mundo cada vez mais conectado – e disputado – por dados e tecnologias sensíveis, o Brasil começa a avaliar um passo ambicioso: criar seu próprio sistema de geolocalização por satélite. A proposta, que exige domínio tecnológico, investimento de longo prazo e decisão política consistente, chega num momento em que o país ainda depende integralmente de sistemas controlados por potências estrangeiras.
A decisão de abrir essa discussão foi oficializada com a criação de um grupo técnico formado por representantes do governo federal, Força Aérea, agências reguladoras e da indústria aeroespacial nacional. A missão do grupo é clara: estudar, em até 180 dias, a viabilidade técnica, econômica e estratégica de o Brasil desenvolver seu próprio sistema de navegação por satélite – como já fizeram Estados Unidos (GPS), Rússia (Glonass), China (BeiDou) e União Europeia (Galileo).
Rodrigo Leonardi, diretor de Gestão de Portfólio da Agência Espacial Brasileira (AEB), reconhece que o debate é complexo e inédito. “Vamos procurar entender os gargalos, as dificuldades, os prós e contras de desenvolvermos um sistema destes”, afirmou em entrevista à Agência Brasil. Ele ressalta que, até aqui, o país concentrou seus esforços espaciais em monitoramento por satélites de observação. A navegação, no entanto, se tornou um novo ponto de atenção estratégica.
Entre alarmismos e realismo
A criação do grupo técnico coincidiu com um momento de tensão nas redes sociais, alimentadas por boatos de que os Estados Unidos poderiam restringir o uso do GPS no Brasil em caso de desentendimentos diplomáticos ou comerciais. Ainda que sem fundamento, o rumor levantou uma questão real: o que acontece se, em um contexto internacional tenso, o país perder o acesso ao sistema de posicionamento do qual depende?
Leonardi nega qualquer relação entre o grupo técnico e os rumores. “Este é um típico caso de ruído surgido nas mídias sociais, capaz de gerar ansiedade”, disse. Ele reforça que, além do GPS, há sistemas alternativos com cobertura global, como o Galileo (Europa), o Glonass (Rússia) e o BeiDou (China). O próprio Brasil já utiliza essas constelações em equipamentos modernos, graças à chamada tecnologia multiconstelação – que permite a captação simultânea de sinais de diversos sistemas.
A importância da autonomia
Apesar das opções disponíveis, a dependência total de infraestrutura estrangeira é vista com preocupação por especialistas. Para o professor Geovany Araújo Borges, da Universidade de Brasília (UnB), ter um sistema próprio não é só uma questão de independência militar, mas de soberania tecnológica e desenvolvimento nacional.
“Várias áreas perdem com essa dependência. Não só porque um país independente precisa de um setor de defesa aeroespacial forte, mas porque o desenvolvimento dessas tecnologias impulsiona outros setores, como a medicina, a indústria e a agricultura”, afirma.
Borges lembra que o Brasil tem profissionais altamente capacitados, mas esbarra na limitação crônica de investimentos e na falta de continuidade das políticas públicas. “Nosso problema não é RH. É dinheiro”, resume. Segundo ele, criar um sistema próprio levaria anos, exigiria desenvolver uma indústria nacional de microeletrônica e dependeria de uma política de Estado com visão de longo prazo.
Projeto ambicioso, mas necessário?
Criar um sistema de geolocalização próprio não é simples. Exige lançar dezenas de satélites, manter estações terrestres, projetar equipamentos com alta precisão e garantir atualizações constantes. Tudo isso, custando bilhões.
No entanto, em um cenário geopolítico cada vez mais volátil, a pergunta que o Brasil precisa responder não é se o projeto é difícil – mas se é possível continuar sem ele.
A criação do grupo técnico, portanto, não é apenas um movimento técnico-burocrático. É o primeiro passo de um debate estratégico que o país precisa enfrentar: entre continuar dependendo de tecnologias de outros ou investir na construção da sua própria infraestrutura crítica.
O relatório final do grupo deve ser entregue até janeiro de 2026. Até lá, especialistas esperam que, mais do que discutir a viabilidade do projeto, o Brasil consiga formular uma visão de futuro sobre o papel que quer ocupar em um mundo cada vez mais guiado – literalmente – pelos satélites no céu.