Remédios entre as prateleiras: supermercados avançam sobre território das farmácias e reacendem guerra bilionária

O setor farmacêutico, há décadas consolidado como espaço exclusivo das drogarias, pode em breve dividir território com os supermercados. Em jogo, não está apenas a conveniência para o consumidor, mas uma fatia generosa de um mercado que movimentou R$ 220 bilhões só em 2024.

A possibilidade está prevista no Projeto de Lei 2.158/2023, em discussão no Senado, que propõe autorizar a venda de medicamentos isentos de prescrição nas grandes redes alimentícias. A iniciativa tem respaldo da indústria farmacêutica e de entidades como a Abras e o Sindusfarma — apoio que incomoda parte expressiva do varejo tradicional.

A movimentação não é isolada. Grandes redes como Assaí e Grupo Mateus já se articulam nos bastidores para liderar a ocupação desse novo espaço. O que atrai esses grupos? A resposta pode estar em um número: R$ 68 mil. É essa a média de receita gerada por metro quadrado nas farmácias, segundo relatório do BTG Pactual. Para efeito de comparação, supermercados faturam R$ 42 mil por metro quadrado.

“Essa diferença sugere que entrar no varejo farmacêutico pode representar uma oportunidade para os supermercados aumentarem sua eficiência e até mesmo capturarem margens maiores”, apontam os analistas Luiz Guanais, Yan Cesquim e Pedro Lima, autores do estudo.

Mais que um projeto de lei — um novo arranjo de poder

A proposta toca num ponto sensível: ela não apenas autoriza, mas reorganiza o mapa de influência de um setor altamente regulado. Já existem parcerias entre drogarias e supermercados, como mostram os dados da Abras: cerca de 23% das farmácias funcionam em áreas anexas aos mercados, especialmente por meio de acordos com redes como o Carrefour.

Com a regulamentação da venda direta, esse percentual poderia se multiplicar rapidamente. A estimativa é que, se 80% das lojas das 30 maiores redes alimentícias aderirem, a capacidade de atendimento do setor cresceria 3,7%. Entre as 300 maiores redes, esse salto chegaria a 8%.

Indústria diz “sim”, com ressalvas

O que antes era visto com desconfiança pela indústria farmacêutica agora começa a ser interpretado como uma oportunidade — desde que as exigências sanitárias sejam respeitadas. O texto do projeto foi modificado para incluir critérios técnicos e a presença obrigatória de um profissional farmacêutico durante o funcionamento.

“Sempre tivemos uma posição muito clara em relação à segurança sanitária na dispensação de medicamentos. A partir do momento em que o substitutivo do senador Efraim coloca a segurança em primeiro lugar, nós apoiamos integralmente”, afirma Nelson Mussolini, presidente executivo do Sindusfarma.

Para Mussolini, o projeto amadureceu ao longo das últimas duas décadas: “A pessoa vai poder entrar e sair com aquilo que o médico prescreveu. Então, pode facilitar a vida do paciente, daquele que está precisando comprar o seu medicamento dentro daquilo que regulamenta a legislação”, defende.

Resistência e temor entre farmácias

Se a indústria enxerga oportunidade, boa parte das redes de farmácias independentes vê risco. A liberação da venda de medicamentos em supermercados é vista por entidades como Abrafarma e o Conselho Federal de Farmácia como uma ameaça não apenas econômica, mas também sanitária.

A Abrafarma tem feito críticas pontuais à proposta, especialmente no que se refere à restrição da telemedicina e à proibição das marcas próprias. Para a entidade, tais pontos “são desproporcionais e prejudiciais à população”.

“Nosso compromisso é com o direito à saúde, à proteção do consumidor e à eficiência nos serviços farmacêuticos”, afirma Sergio Mena Barreto, CEO da Abrafarma.

O que está em disputa

Muito além da escolha entre comprar o remédio na farmácia da esquina ou no corredor ao lado do arroz e do feijão, o que está em jogo é a reconfiguração de um dos mercados mais lucrativos do país. A aprovação da medida pode alterar profundamente a paisagem do varejo, deslocar empregos, transformar relações com a saúde pública e fortalecer grandes conglomerados.

A decisão está nas mãos do Senado. Mas os lobbies — de todos os lados — já estão em plena atividade.

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