No alto do Flexal de Cima, dona Lucélia Aureliano observa as trincas que cortam as paredes da casa onde vive há quase meio século. São marcas novas, mas já fazem parte da rotina. Estão nos quartos, nos corredores, no chão da sala. O concreto, antes firme, hoje range com o peso da incerteza. Ela respira fundo antes de dizer:
“Moro aqui há 46 anos e nunca minha casa tinha rachado.”
O desabafo ecoa entre vizinhos que, assim como ela, vivem à sombra de uma tragédia silenciosa: o afundamento do solo em Maceió, provocado pela mineração da Braskem. Mas, desta vez, a dor ganhou um novo nome — negação oficial.
Divulgado no final de julho, um relatório técnico assinado pela Defesa Civil Municipal, Defesa Civil Nacional e pela própria Braskem conclui que não há ligação direta entre os danos estruturais observados nas comunidades dos Flexais e a subsidência do solo causada pela mineração. Em outras palavras: as rachaduras seriam, segundo os técnicos, resultado de problemas nas construções e não efeito da mineração.
“Estão nos apagando do mapa”
As palavras do documento contrastam com o que se vê nas ruas e casas da região. Muros trincados, pisos afundando, janelas desalinhadas. “Eles dizem que a culpa é nossa, que construímos errado. Mas fomos nós que pedimos para morar em cima de uma mina ativa?”, questiona Lucélia. O sentimento entre os moradores é de revolta.
“Estão nos apagando do mapa”, denuncia o Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB), que contesta a versão oficial. Para o presidente da entidade, Maurício Sarmento, o relatório serve mais para proteger a empresa do que para proteger vidas.
Segundo ele, foram realizadas apenas 37 vistorias nas comunidades — cerca de 17% do total de residências. Mesmo assim, o próprio documento técnico aponta que quase metade dos terrenos vistoriados estavam em áreas de risco, com cortes ou aterros sem contenção, e que a região está situada sobre encostas naturalmente instáveis da Formação Barreiras.
Dados ignorados
O que mais surpreende, porém, são os dados ignorados. O relatório reconhece que, em 46 pontos da AT-01 (área que inclui os Flexais e parte da Chã de Bebedouro), o solo apresentou deslocamentos verticais de até -10 milímetros por ano — um indicativo claro de instabilidade geológica. Em trechos como a Rua Marquês de Abrantes, o afundamento acumulado já chega a -54,7 mm.
Mesmo diante desses números, os técnicos descartam qualquer ligação com a mineração, alegando que a direção das fissuras nas casas não coincide com o padrão da subsidência. Para a comunidade, essa justificativa é mais uma tentativa de restringir o mapa das áreas afetadas — e, com isso, limitar o número de indenizações.
“Mesmo assim, a equipe técnica afirma que os danos encontrados — como rachaduras em paredes, pisos afundando e infiltrações severas — seriam fruto de vícios construtivos e ausência de manutenção. Em uma das inspeções, foi constatado que 93% das casas não possuíam impermeabilização adequada, e mais de 80% apresentavam ausência de vergas ou contravergas“, diz Sarmento.
Laudos que ferem
Para quem vive nos Flexais, a sensação é de que os laudos técnicos não servem para entender o problema, mas para legitimar o silêncio. Assinado por representantes da própria Braskem — a empresa que cavou o vazio embaixo dos pés de Maceió — o relatório compromete sua própria credibilidade.
“O que estamos vendo é uma política de invisibilização das vítimas. Uma tentativa de esconder os efeitos de uma tragédia para proteger o lucro de quem a causou”, afirma Sarmento.
O Movimento Unificado das Vítimas da Braskem cobra a inclusão da AT-01 no mapa oficial das áreas afetadas, indenizações justas, participação da população nas decisões técnicas e a realização de perícia independente.
Enquanto isso, dona Lucélia segue em sua casa ferida, esperando que as rachaduras em suas paredes sejam finalmente vistas como o que são: cicatrizes de uma terra que cedeu — e de um Estado que ainda hesita em reconhecer.